Edição n° 80
Por Fabiana Rodovalho Nemet Nº USP: 10 14 10 70
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É fato que um problema social não pode ser solucionado pelo Poder Judiciário, mas pela responsabilização da sociedade como um todo, cobrando, do poder público, efetivas mudanças na legislação, relativas aos comportamentos éticos e responsáveis do cidadão em sociedade. Como explícito em todos os canais de comunicação, nesses últimos dias é pauta de questionamentos em todo o país a postura da justiça paulista, que, a priori, considerou desnecessária a prisão de Diego Ferreira de Novaes, o jovem homem de 27 anos que na última terça-feira ejaculou no pescoço de uma passageira em um ônibus coletivo, repleto de pessoas, em plena Avenida Paulista.
No dia seguinte, o mesmo homem, no interior de um ônibus coletivo, o qual transitava nas imediações da mesma avenida – mais precisamente na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, praticou ato libidinoso em face de outra passageira, momento em que quase sofreu linchamento por parte dos demais passageiros. Assim como no primeiro fato, a polícia chegou com muita agilidade; o homem foi preso e indiciado novamente pelo crime de estupro, porém, desta vez, a justiça resolveu mantê-lo encarcerado!
Colegas jornalistas que colaboram com a equipe do jornal Folha Carapicuibana pôde constar, diretamente na Avenida Paulista, a incredulidade das pessoas em relação à justiça de São Paulo, posto que os questionamentos pairem sobre a mesma questão: a razão do homem ter sido preso no último caso e não no penúltimo, mesmo sendo responsável por 17 casos análogos.
As opiniões são divididas. A maioria, veemente indignada, prega a prevenção ao risco, digamos, de se constituir uma sociedade onde prevaleça a “lei de talião”. Em observância aos fatos, vale dizer que o “garantismo” não pode ser absoluto, logo, a moral não pode ser afastada da aplicação da lei. O autor dessa barbárie foi preso novamente, tendo em vista que, da primeira vez, não deveria ter sido solto, mas encaminhado para tratamento.
Segundo a própria mãe, o criminoso sofreu um acidente sério há dez anos, com “possível” comprometimento de seu comportamento. Se houver veracidade nos fatos, ninguém se importou na época. Não existe um programa social, um apoio estrutural para essas hipóteses. Olhando por este prisma, os criminalistas diriam que tal comportamento começou a ser nocivo para a sociedade que acha que a solução milagrosa deve ser a cadeia. E, por razões interpretativas, põe a culpa no juiz pelo criminoso não estar lá.
Ora, é evidente que isto ainda será analisado. Independentemente de sua real situação no momento dos crimes, se era ele inteiramente capaz ou incapaz de entender o caráter ilícito do fato, seja de forma absoluta ou relativa, trata-se de um comportamento doentio, fato inegável. A resposta não foi satisfatória à sociedade: é bem provável que o juiz tenha decidido pelo óbvio!
De qualquer forma, há outras correntes de pensamentos, pois uma vez que tal decisão não é óbvia na lei, não é tão simples assim. Não pode o juiz extirpar alguém do convívio pessoal por conta do achismo, deduzindo que tal comportamento é inadequado e pode vir a se tornar perigoso. Para isto, tem que haver provocação do Ministério Público, bem como respaldo em laudos técnicos. Detalhe: isto não se faz em audiência de custódia!
Além do mais, o juiz não é garantista: em sua visão, o fato não constitui estupro, mas ato obsceno, que é crime de menor potencial ofensivo, punível com pagamento de multa. Neste contexto, não havia como prender preventivamente: a lei não permite.
Descurando-se deste ponto, vieram os questionamentos das pessoas na Avenida Paulista, questões básicas, computando praticamente as mesmas dúvidas:
Erro de interpetação?
Art. 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
A vítima foi forçada a receber sémen em seu pescoço sem consentimento, enquanto estava dormindo no ônibus. Para alguns atos libidinosos é preciso se valer da força, para outros, não. Ainda assim continua não havendo consentimento da vítima. Ela foi obrigada a vivenciar esta situação absurda, portanto, não consentiu. Este fato, por si só, demonstra o fator impeditivo, o qual dificultou a livre manifestação de vontade da vítima.
O ato, além de obsceno, é repugnante e criminoso. Sabe-se que a lei é falha ao não prever uma sanção mais grave para essa hipótese (o legislador, na época, não cogitou a hipótese de que, anos depois, haveria situações repugnantes como esta). Há interpretações mais elásticas, as quais podem levar à conclusão de estupro, todavia, é bem provável que não seria decidido diferente do que foi feito, no atual contexto legal (se porventura o ministro Gilmar Mendes, que faz o que quer no STF, resolver analisar a situação, um juiz de primeira instância poderá livrar a sociedade de indivíduos como este).
Por outro lado, não se trata de elasticidade, mas de não se prender à visão do criminalista. Além disto, o papel social da justiça tem que ser desempenhado: ainda que não haja a prisão do criminoso, não pode haver toda a benevolência utilizada, pelo contrário… Muitos atos poderiam ter sido realizados pelo juiz José Eugênio Souza Neto a fim de demonstrar a gravidade do fato, em especial a determinação de tratamento. Infelizmente, para a maioria, sua opção se fez óbvia: pouco caso!
Há quem diga que o problema no Brasil é a visão de luta de classes que há no Direito Penal, em sua interpretação. Para ser mais preciso, o criminoso, especialmente se mais humilde, é sempre visto como alguém sem volição nenhuma, uma mera marionete da sociedade que o oprime. Na margem interpretativa, a balança sempre pende a favor do criminoso. A tipificação existe no Código Penal. O fato é que o juiz e o Ministério Público só fizeram optar pela via mais benevolente e não a mais rigorosa.
Vejo que muitos dos meus colegas, bacharéis em Direito e advogados militantes, demonstraram grande mobilização e empenho para defender o magistrado em questão, mas seria de grande valia se estivessem esses profissionais canalizados em projetos de mudança legislativa junto à sociedade, neste momento oportuno, trabalhando a fim de minimizar a margem de possibilidade de se repetirem situações estapafúrdias e “legais” como esta. Mas as mudanças seguem a passo de tartaruga. Muitos ainda acham que o principal objetivo da lei penal deve ser “ressocializar” e reabilitar, em vez de punir. Não se confunde o sistema o sistema prisional (no Brasil é adotado o sistema carcerário) com a lei penal. O sistema carcerário tem a função de reabilitar o sujeito, enquanto a sansão, imposta pela lei, tem o objetivo de punir.
Para outros colegas, não se trata de defender o ato, mas de não apoiar a execração pública do magistrado – os demais juízes, inclusive, repudiam linchamento moral do colega. Ora, não vejo como execração. A sociedade é assim! Eventuais excessos em uma ou outra crítica jamais deslegitimarão a indignação por parte da maioria para com a decisão. A propósito, a prova da correção da indignação veio no dia seguinte, quando o criminoso voltou a delinquir e foi preso.
A conduta não está tipificada. Como então entender a divergência nas decisões do TJ-SP? Em casos análogos, metade dos crimes foi denunciada e recebida como estupro e a outra metade não.
Foi este um dos maiores questionamento das pessoas. Neste caso, levando em conta o princípio da analogia, qual é o embasamento legal para as diferentes decisões do magistrado? Cada caso é um caso, passível de análise. No caso propriamente dito, a tipificação do crime é de menor potencial ofensivo, por isto não acarreta a prisão, com exceção para vulneráveis (menores de 14 anos e pessoas com a capacidade momentânea ou permanentemente prejudicada), o que caracteriza estupro.
Para ilustrar a situação, a lei é tão contraditória que, se um garoto de 18 anos obtiver relações sexuais com sua namorada de 13, com o consentimento dela, é autuado como estuprador e pode ser incorrido em uma pena mínima de 08 anos.
Já uma situação de violência sexual – como a ocorrida com este homem dentro dos transportes públicos em São Paulo -, é tema de um debate pelo ato ser considerado delito de menor potencial lesivo.
Em um entendimento mais amplo, foi tipificado: crime contra a dignidade da pessoa humana feminina, tipo previsto na Constituição Federal. É sabido que as regras infraconstitucionais não podem prevalecer contra os princípios constitucionais. Foi assim na Alemanha nazista: a “lei” justificou a guerra!
Pensando deste modo, a lei penal deve ser interpretada conforme a Constituição. Não há como se negar que, em um transporte urbano, ser vítima de uma agressão desta natureza (ejaculação no pescoço) não represente uma gravíssima agressão à dignidade da pessoa humana.
Juiz diz que ato não é constrangedor
A maioria das pessoas defende a mesma posição: o juiz deveria ao menos ter deixado clara sua indignação, contudo, ter determinado exames psiquiátricos, vez que a sociedade está diante de um criminoso com óbvias características de problemas psiquiátricos. Ao contrário, fez questão de deixar clara sua opinião de que uma “ejaculação não consentida no pescoço não é constrangedora”, um absoluto desserviço e desrespeito às mulheres que tanto lutam por mais segurança. Ademais, contrariando a posição do magistrado, o art. 215 do Código Penal é perfeito para a tipificação!
A fundamentação poderia ter sido bem diferente, visto que ele não teve sensibilidade, tampouco agiu com equidade por não se importar com a vítima, mas perdeu grande oportunidade de prestar relevante serviço social, auxiliando no essencial debate sobre uma legislação penal.
Levando em conta o fato de o criminoso ter cometido 17 casos análogos, por qual razão ele foi preso nesse último caso e não no penúltimo, quando ejaculou no pescoço da vítima?
Esta questão é a mais simples de ser respondida: o criminoso foi preso em decorrência da comoção pública, mídia etc. Se porventura a situação não tivesse chegado ao público e a imprensa, seriam centenas de casos semelhantes, sem nenhuma ação.
Por esta razão a sociedade tem que praticar a cidadania, a partir de movimentos sociais e pressão no legislativo, exigindo as mudanças cabíveis e necessárias das leis brasileiras; tem que haver repressão legal para aqueles que não se comportam segundo as normas, todavia, as normas precisam ser adequadas. A banalização de comportamentos inaceitáveis é puro retrocesso social, para o qual não deve haver espaço na coletividade. Ora, os brasileiros já tomaram as ruas do país e provaram que a força é legitimada. Onde estão os organizadores das grandes manifestações?
Afinal, esperar todo o problema acontecer e, em seguida, culpar o juiz por não tê-lo solucionado conforme a resposta esperada pela sociedade, por vias de fato, em nada ajuda!