Edição n°24
Muito se fala sobre ser o Brasil um país laico. Entretanto, a laicidade nem sempre é bem entendida, o que pode gerar confusão para aqueles que não estão familiarizados com o termo. Tal confusão se faz presente mesmo entre iniciantes nos estudos do Direito quando se discute o conteúdo preambular da Constituição Federal, promulgada em 05 de outubro de 1988. É que ao expressaram os anseios pelo atendimento das expectativas democráticas daquele momento, superando de vez o regime de exceção que vigorou entre 1964 e 1985, os constituintes redigiram o preâmbulo, nele inserindo a expressão “sob a proteção de Deus”. É o conteúdo do preâmbulo:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
Vale ressaltar que ter um texto preambular é da tradição nas Constituições brasileiras. O preâmbulo não tem força normativa, porém é útil para entender o ideário dos constituintes e o contexto em que a Constituição foi elaborada. Demais disto, o texto preambular faz referência a princípios contidos no texto propriamente normativo. A alusão à proteção de Deus no preâmbulo não deve ser considerada uma negação à laicidade do Estado brasileiro, mesmo porque não há referência a um Deus específico. Portanto, não privilegia nem exclui qualquer crença. Poder-se-ia argumentar que o texto é inadequado àqueles adeptos do ateísmo. Porém, o texto preambular é representativo do ideário consensual daqueles que o elaboraram.
Mas a questão aqui relevante é entender o que torna um país laico, ou leigo. Ser um país laico significa, essencialmente, que o mesmo não adota oficialmente um credo ou uma religião. Em sentido contrário, a adoção oficial de uma religião ou crença, caracteriza um país confessional. Vale ressaltar que o Brasil nem sempre foi um país laico. Durante todo o Império, que perdurou da Independência até a proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, o Brasil foi confessional, tendo a Católica como religião oficial, que inclusive tinha a função de administração dos assentos de nascimentos e óbitos que ocorriam no Império, além dos registros relativos à propriedade. Outras religiões eram permitidas, porém não de forma ampla, como se observa no texto do art. 5º, da Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824:
Art. 5. A Religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do Templo.
Na Constituição Federal de 1988, art. 19, inciso I, encontra-se estampada a laicidade do Brasil atual, nos seguintes termos:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.
A laicidade do Brasil tem relação com os direitos fundamentais a todos assegurados na Constituição Federal. Tais direitos não podem, em regra, ser desrespeitados nem mesmo pelo Estado. E dentre eles está o direito garantido pelo inciso VI, do artigo 5º, dispondo que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. Os direitos fundamentais compõem uma importante conquista das democracias, e devem ser preservados.