Capacidades estatais para políticas de infraestrutura no Brasil contemporâneo

RESUMO
O texto tem como objetivo discutir as capacidades do Estado brasileiro, notadamente do Poder Executivo Federal, para produzir políticas de infraestrutura eficientes que entreguem os benefícios esperados e obtenham o apoio (ou o consentimento) dos grupos sociais impactados. Argumenta-se que a profissionalização e a qualificação técnica existentes na burocracia pública do governo federal são constrangidas pela baixa autonomia e coesão intragovernamental. Igualmente, as relações da burocracia com a sociedade local, os representantes dos entes federativos e as agências de controle são precárias. Tal situação constitui-se em barreira para a eficiência e legitimidade da ação estatal no setor.

 

1. INTRODUÇÃO

 

No Brasil, na última década, surgiram diversos planos e programas governamentais com o objetivo de impulsionar os investimentos no setor de infraestrutura como forma de alavancar o crescimento econômico e atender a demanda da sociedade por bens e serviços públicos de qualidade. No nível federal, o Projeto Piloto de Investimentos (PPI), de 2005, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), de 2007, e o Programa de Investimentos em Logística (PIL), de 2012, exemplificam tais ações. De acordo com Abreu e Câmara (2015), a centralidade dos projetos de infraestrutura na agenda política desse período culminou em alterações específicas na forma de organizar e gerir o orçamento a fim de aumentar a possibilidade de sua execução efetiva. Contudo, à medida que a implementação dos programas progredia, tornou-se claro que o problema do investimento no setor não era apenas de recursos fiscais, mas também da capacidade do governo em executá-lo (Raiser et al., 2017). Atrasos na entrega das obras anunciadas e estouros de orçamento foram os principais efeitos dessa falta de capacidade.
Entendendo que políticas de infraestrutura são críticas para o desenvolvimento de um país, a análise dos atributos e das habilidades do Estado para produzi-las torna-se um campo importante de pesquisa. Atualmente, exige-se que o Estado seja capaz de realizar suas ações com o mínimo desperdício de tempo e recursos. Do mesmo modo, a democracia demanda transparência e controle das ações dos políticos e burocratas, ao passo que inclui mais atores nos processos decisórios. Isso tudo levou a que as capacidades do Estado para a produção de políticas públicas passassem a ser associadas não só à qualidade técnica da burocracia do serviço público, mas também à existência e ao funcionamento efetivo de canais de conexão entre o aparato político-administrativo do Estado e a sociedade civil, dotando a ação estatal de legitimidade (Painter e Pierre, 2005Evans, 2011).
É nesse contexto que se situa este trabalho. Ele tem como objetivo discutir as capacidades do Estado brasileiro, notadamente do Poder Executivo Federal, para formular e implementar políticas de infraestrutura no Brasil contemporâneo, em um ambiente político-institucional complexo, balizado pelas instituições democráticas da Constituição Federal de 1988 (Gomide e Pires, 2014).

 

A análise que prossegue se apoiará nos dados de um questionário aplicado e respondido por mais de 2 mil servidores federais da área de infraestrutura (Freire et al., 2016) e em informações produzidas por seis estudos de caso (Ocon, 2015Santiago, 2016Santana, 2017Panariello, 2015Machado, 2016Alves, 2016). O survey, aplicado por meio de questionário online durante os meses de outubro e novembro de 2015, teve entre seus objetivos identificar o perfil dos burocratas federais da administração direta e indireta responsáveis diretamente pelo planejamento, execução e regulação de projetos de infraestrutura nas áreas de transportes terrestres, aéreo, aquático, ferroviário e de energia elétrica.1 Foram investigadas também as percepções desses burocratas sobre as principais questões que afetavam suas rotinas de trabalho. Por sua vez, os estudos de caso utilizados foram produzidos no âmbito de pesquisa conduzida pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), entre os anos de 2015 e 2016 (Gomide et al., 2016).
Os casos estudados compreenderam projetos selecionados da carteira do PAC tendo como critérios as características definidoras do investimento pelo governo federal2 (Gomide et al., 2016:8-10). Assim, a escolha dos casos analisados por este artigo é produto da disponibilidade de estudos referentes aos projetos selecionados pela referida pesquisa. Os casos estudados foram: a Usina Termelétrica (UTE) de Candiota 3, que compõe um conjunto de termelétricas localizadas no município de Candiota, a 400 km de Porto Alegre (RS), com capacidade de geração de energia elétrica de 350 MW; o BRT Sul do Distrito Federal, que constitui um corredor exclusivo de ônibus de 35 km de extensão que integra as regiões administrativas do Gama, Santa Maria e o Entorno do Sul ao Plano Piloto; a Usina Hidrelétrica (UHE) de Teles Pires, localizada no rio de mesmo nome da usina, nos municípios de Paranaíta (MT) e Jacareacanga (PA), possuindo uma potência instalada de 1.820 MW e um reservatório de 137 km²; a Pavimentação da BR-163/PA, obra que abrange 972 km no estado do Pará e 52 km no estado do Mato Grosso, conectando as cidades de Guarantã do Norte (MT) a Santarém (PA), totalizando 1.024 km; a Linha 1 do Sistema Metroviário de Salvador e Lauro de Freitas (Metrô de Salvador), que compreende 11,9 km, com oito estações entre Lapa e Pirajá; e a Ferrovia Nova Transnordestina, projeto que parte de Eliseu Martins (PI) e segue para Salgueiro (PE) e São Gonçalo do Amarante (CE), somando 1.753 km.3
Este artigo se divide em mais quatro seções, além desta introdução. A seção seguinte faz uma breve revisão da literatura sobre capacidades estatais, oferecendo o framework que foi adotado para análise empírica. Com base nas informações dos estudos de caso, a seção 3 discute processos críticos, apontados tanto pela literatura como por gestores públicos, para execução de projetos de investimento no Brasil contemporâneo. A partir dos dados coletados pelo survey, a seção 4 avalia as capacidades burocráticas e relacionais da burocracia federal dos setores de energia e transportes. Por fim, a seção 5 retoma as questões que motivaram a análise e apresenta as contribuições do trabalho.

 

2. A EFICIÊNCIA E LEGITIMIDADE DA AÇÃO GOVERNAMENTAL COMO PRODUTO DAS CAPACIDADES ESTATAIS
O conceito de capacidades estatais tem se destacado na pesquisa sobre políticas públicas, uma vez que as capacidades administrativas do Estado aparecem como uma fonte de fortalecimento da ação governamental, moldando a implementação e o impacto final das suas ações (Wu, Ramesh e Howlett, 2015Cingolani, Thomson e Crombrugghe, 2015). Assim, altos níveis de capacidades são associados a resultados superiores, enquanto déficits de capacidade são associados a desempenhos subótimos (Grin, 2014). Aplicado ao setor público, o conceito de capacidade é definido como a habilidade do governo de dirigir e controlar seus recursos humanos, financeiros, informacionais e físicos, com o objetivo de realizar as missões organizacionais (Christensen e Gazley, 2008).

 

Os primeiros debates sobre capacidades estatais remontam à literatura sobre a formação dos Estados modernos, a partir da capacidade associada ao poder coercitivo do Estado para prevenir conflitos externos (Tilly, 1985). Os estudos sobre capacidades foram intensificados nas décadas de 1980, impulsionados pelo movimento “estatista”, de linhagem teórica weberiana, que interpretava o Estado como um ator relativamente autônomo e capaz de estabelecer seus próprios objetivos (Skocpol, 1985). O “estatismo” resgatou a teoria do desenvolvimento do pós-guerra que posicionava o Estado como um ator central para a promoção de mudanças estruturais (Evans, 1993).

 

Desde então, a literatura sobre o tema tem passado por um processo de expansão, em que o conceito tem sido aplicado a temáticas que ultrapassam a ênfase inicial que vinculava as capacidades estatais à existência de burocracias do tipo weberiano capazes de implementar políticas de desenvolvimento industrial. Assim, para Wu, Ramesh e Howlett (2015), o conceito de capacidade estatal vincula-se a funções de governança do Estado e à existência de recursos e competências analíticas, operacionais e políticas de indivíduos e organizações do setor público. Do mesmo modo, para Painter e Pierre (2005) o conceito associa-se à habilidade de o Estado reunir os recursos necessários para fazer escolhas coletivas e estabelecer orientações estratégicas para a alocação de recursos escassos para fins públicos.

 

Para Gestel, Voets e Verhoest (2012), a capacidade do Estado para produção de políticas públicas é uma função de fatores internos – como infraestrutura organizacional, recursos (humanos e financeiros) e sistemas de gestão – e externos, incluindo apoio social, qualidade dos relacionamentos entre Estado e sociedade e acesso a informações. Gomide e Pires (2014) trabalham com uma perspectiva dualista para explicar a criação e a sustentação de capacidades estatais: endogenamente, a partir de uma perspectiva técnico-administrativa, pautada pelo desenvolvimento de sistemas de gestão capazes de formular e implementar políticas com a presença de profissionais especializados, recursos financeiros e organizacionais; e exogenamente, a partir de uma perspectiva político-relacional, embasada, sobretudo, pela natureza das ligações e associações entre Estado e sociedade.

 

A dimensão técnico-administrativa destaca as estruturas internas do Estado enfatizando atributos como profissionalização, autonomia e coesão da burocracia para a ação estatal (Evans, 1993). A importância da profissionalização da burocracia pública remonta os trabalhos clássicos de Weber. Para Skocpol (1985), a profissionalização, influenciada pelo recrutamento meritocrático e por um conjunto de incentivos de carreira (tais como promoção e salários competitivos), permite que os burocratas avaliem os problemas e proponham soluções tecnicamente adequadas.4 Por sua vez, a autonomia pode ser entendida como a não subordinação dos burocratas aos interesses imediatos dos grupos ou classes sociais. A autonomia seria necessária para que os burocratas elaborassem políticas coerentes, evitando a “balcanização” do Estado (Rueschemeyer e Evans, 1985). A autonomia também se refere à maneira como os políticos ou principais atribuem mandatos aos burocratas, que atuam como seus agentes. Conforme Fukuyama (2013), haveria uma variedade de maneiras pelas quais tais mandatos podem ser emitidos. Idealmente, o principal deve estabelecer um mandato geral para o agente (por exemplo, implementar uma obra). Mas o principal também pode emitir uma ordem sobre a maneira de o burocrata cumprir tal mandato (por exemplo, contratar um determinado empreiteiro para realizar a obra). A autonomia, portanto, estaria inversamente relacionada com a natureza dos mandatos emitidos pelo principal: quanto mais gerais os mandatos, maior autonomia possui a burocracia. Por fim, a coesão pode ser entendida tanto como os laços formais e informais entre os burocratas (Evans, 1993) e o alinhamento das diversas organizações estatais a uma mesma orientação, evitando redundâncias e contradições no alcance dos fins definidos; ou seja, refere-se à capacidade de ação da burocracia estatal de forma coordenada (Rueschmeyer e Evans, 1985).

 

A abordagem relacional, por sua vez, surge como uma crítica e um complemento à perspectiva interna, que, segundo Weiss (1998), é pautada por uma visão de soma zero das relações de poder, negligenciando os efeitos dos conflitos e das negociações assim como as possibilidades de construção de capacidades estatais a partir da colaboração com atores de fora do Estado. Essa perspectiva se alinha com a dimensão de capacidade “externa” elaborada por Gestel, Voets e Verhoest (2012), que enfatiza o apoio social, a qualidade dos relacionamentos e os processos de articulação. Conforme Evans (2011), o Estado deve buscar sinergias com a sociedade civil para produzir políticas públicas de forma mais efetiva. O relacionamento com a sociedade civil seria fundamental não só para obter informações acuradas acerca dos problemas a serem enfrentados, aumentando a inteligência do Estado e o aprendizado social, mas também para conquistar o engajamento da população beneficiária na implementação dos programas.

 

Essa perspectiva relacional de capacidades estatais pode ser ampliada ao se considerarem os trabalhos que focam as relações entre burocracia e múltiplos atores, além dos da sociedade civil. Nessa linha, têm ganhado destaque análises sobre as relações e os processos de interação entre as burocracias executoras com os atores do Poder Legislativo, representantes dos governos subnacionais e burocratas dos órgãos de controle externo (Gomide e Pires, 2014).

 

Um dos obstáculos enfrentados pelos estudiosos das capacidades estatais diz respeito à circularidade e à endogenia na aplicação do conceito, em que a capacidade é confundida com seus efeitos (Cingolani, 2013). Para Kocher (2010), o que leva a esse problema é produto do tratamento genérico que é conferido ao conceito, sem maiores elaborações sobre quais atributos são necessários para produzir efeitos específicos. Diante disso, ele propõe a decomposição do conceito em suas partes constitutivas, ou seja, na explicitação dos elementos que influenciam determinados eventos ou dos fatores que causam o fenômeno de interesse do pesquisador.

 

Nesse sentido, para fins deste trabalho, desagregou-se o conceito em duas dimensões principais que, por sua vez, foram operacionalizadas em variáveis passíveis de verificação empírica. A primeira dimensão do conceito, denominada burocrática, está associada aos critérios de eficiência e coerência nas ações governamentais, sendo operacionalizada pelas seguintes variáveis: profissionalização; autonomia; e coordenação. A segunda dimensão, cognominada relacional, está associada aos critérios de legitimidade e transparência, sendo operacionalizada pelas seguintes variáveis: relação das burocracias do Executivo com os grupos sociais locais; articulação com os representantes dos entes subnacionais; e diálogo com órgãos de controle externo.

 

Apoiando-se em antecedentes causais listados pela literatura, a hipótese de trabalho adotada neste trabalho é que a capacidade burocrática é atributo essencial para a qualidade dos projetos de infraestrutura, contribuindo para que o processo decisório (ou de seleção dos projetos) resulte em decisões acertadas. Isso tem impactos diretos na quantidade de tempo e de recursos empregados na execução das obras (eficiência alocativa e técnica).5 Do mesmo modo, a capacidade relacional – alusiva ao processo de interação qualificada entre os múltiplos atores interessados (stakeholders) – estaria positivamente associada ao apoio político aos projetos e ao aprendizado social, resultando em serviços públicos de qualidade e com os benefícios esperados6 (quadro 1, adiante).
Capacidades estatais: dimensões e variáveis de análise Fonte: Elaborado pelos autores.
3. EXECUÇÃO DE PROJETOS DE INVESTIMENTO EM INFRAESTRUTURA: AS INFORMAÇÕES DOS ESTUDOS DE CASO
A execução de empreendimentos de infraestrutura7 se refere à condução dos processos administrativos para sua implementação, envolvendo um conjunto de órgãos públicos e privados responsáveis pelo planejamento, elaboração dos projetos de engenharia, licitações, gestão de contratos, como também dos procedimentos relativos ao licenciamento ambiental, desapropriações e controles externos (Pires, 2015).

 

Os casos estudados sugerem uma baixa capacidade do governo federal na execução de projetos de investimento em infraestrutura, concorrendo com os achados de Raiser e colaboradores (2017). Essa baixa capacidade produz impactos diferentes em cada setor: no setor de transportes, predominam empreendimentos marcados por atrasos na entrega e estouros de orçamento; no setor de energia, o descompasso entre a entrega dos empreendimentos de geração e os de transmissão de energia produziu atrasos no aproveitamento do potencial energético total dessas obras. O quadro 2 apresenta as principais características e resultados da execução dos empreendimentos de infraestrutura analisados.

 

Características da execução dos projetos de infraestrutura estudados* Fonte: Elaborado pelos autores.

 

No setor de transportes, a baixa eficiência na entrega dos empreendimentos estudados foi diagnosticada como resultado da inadequação das fases de planejamento e elaboração dos projetos (Gomide et al., 2016). No caso da Transnordestina, em 2006, ocasião do lançamento do projeto da ferrovia, o projeto era deficiente, especificando apenas os pontos de partida, chegada e as principais intersecções. Além disso, os estudos de engenharia foram elaborados apenas após o início da implementação da ferrovia, entre os anos de 2007 e 2009 (Machado, 2016). Da mesma forma, o projeto da Pavimentação da Rodovia BR-163/PA estava desatualizado e incompleto no momento do reinício das obras, em 2008 – além de o projeto não ter considerado as peculiaridades climáticas e logísticas da região (Panariello, 2015).

 

Na área de energia, a seleção dos empreendimentos foi realizada de forma mais acertada, explicando melhores resultados em termos relativos (i.e., quando comparados aos projetos da área de transportes). Isso pode ser atribuído à existência de planejamento de longo prazo no setor, em que estudos prévios de inventário e de viabilidade da obra embasam a elaboração do projeto básico. Entretanto, uma vez que o marco regulatório da área de energia prevê a desverticalização do setor – transformando a geração, transmissão, distribuição e comercialização em etapas independentes (Chagas, 2008) -, os leilões de geração e de transmissão ocorrem separadamente. Tal característica institucional exige fortes capacidades de coordenação por parte da EPE e Aneel, que devem promover um planejamento paralelo e convergente desses leilões e dos cronogramas de implementação.

 

Pelo fato de as obras estudadas pertencerem à carteira de projetos do PAC, eles foram objeto de coordenação e monitoramento intensivo. Tais atividades foram conduzidas principalmente pela Secretaria Especial do PAC (Sepac), responsável por subsidiar a definição das metas relativas aos projetos integrantes da carteira do Programa; monitorar e avaliar seus resultados; e por produzir informações gerenciais (Pires, 2015). De acordo com Pires (2015), a atuação dos operadores do PAC é marcada por interações laterais e verticais. As primeiras são caracterizadas pelas redes estabelecidas por meio de contatos diversificados e constantes entre os burocratas da Sepac com os demais burocratas situados nos ministérios setoriais. As salas de situação representam o principal instrumento da coordenação do Programa, sendo compostas pelos burocratas da Sepac e dos ministérios setoriais responsáveis pelos projetos da área específica, como também de outros órgãos federais que interferem na execução. As salas de situação funcionam como espaços de compartilhamento de informações sobre a execução dos projetos, de identificação de pendências e de encaminhamento de soluções. Por sua vez, as interações verticais são caracterizadas pelo contato entre os burocratas do Sepac com autoridades do Ministério do Planejamento e com outras estruturas de gestão do PAC – como o Grupo Executivo do PAC e o Comitê Gestor do PAC. Essas interações possibilitam que entraves não solucionados nas salas de situação alcancem o núcleo decisório central do programa e da Presidência da República.

 

A atuação da Sepac nos casos estudados ilustra avanços nos processos de coordenação governamental de grandes projetos de investimento de infraestrutura. No caso da ferrovia Transnordestina, a Sepac promoveu a articulação com a Secretaria do Tesouro Nacional a fim de monitorar as diversas fontes de financiamento e diminuir o tempo de tramitação dos processos orçamentários. Na UHE Teles Pires, a articulação realizada pela Sepac viabilizou a ação coordenada entre os diversos ministérios para a implementação de ações complementares no entorno das obras (Lotta e Favareto, 2016). Mesmo nos casos em que a modalidade de execução foi indireta, ou seja, executada pelos estados ou municípios com financiamento federal, observou-se um papel de coordenação entre atores de diferentes esferas governamentais por meio da Caixa Econômica Federal (CEF).

 

Entretanto, o fato de os empreendimentos que compõem a carteira do PAC terem sido selecionados a partir de projetos que já se encontravam em execução ou que já haviam sido planejados limitou a capacidade de coordenação realizada no âmbito do programa, fazendo com que a coordenação se concentrasse somente na fase de execução da obra, sempre de forma reativa aos problemas (Lotta e Favareto, 2016). Fragilidades de coordenação ou integração governamental na fase do planejamento produziram situações em que obras foram concluídas, mas os serviços não foram entregues à população. Esse foi o caso do BRT Sul DF, em que a baixa coordenação entre DER/DF e DFTrans fez com que parte do empreendimento fosse entregue sem que existisse um sistema eficiente de integração intermodal (Santiago, 2016). O mesmo se deu com a obra da Usina Hidrelétrica de Teles Pires, em que a finalização das obras ocorreu em momento anterior à instalação da linha de transmissão (Ocon, 2015). No caso da Transnordestina, a baixa coordenação entre as agências executoras e outros órgãos governamentais – como a Funai e o Incra – impediu o surgimento de uma gestão antecipada de conflitos, o que culminou em problemas relacionados com desapropriações e com os impactos negativos da obra sobre populações tradicionais (Machado, 2016).

 

Contudo, os casos analisados foram marcados por baixo nível de conflito com a sociedade civil, o que reforça os achados do estudo de Hochstetler e Tranjan (2016) de que a maioria dos empreendimentos de infraestrutura não é alvo desse tipo de contestação local. Ao contrário, houve adesão da comunidade local em alguns casos, como indicado pelo movimento “Eu apoio o carvão” no contexto de implementação da UTE Candiota (Alves, 2017), como também no caso da linha 1 do Metrô de Salvador, em que os protestos que ocorreram foram devidos ao atraso na conclusão da obra. Todavia, conflitos ocorreram nas obras da ferrovia Transnordestina, especialmente por causa do elevado número de desapropriações (Machado, 2016), e na construção da UHE Teles Pires, na qual ONGs e grupos indígenas temiam os danos ambientais a serem ocasionados (como o desaparecimento da área conhecida como Sete Quedas após a formação do lago da usina).

 

O processamento desses conflitos tem se revelado como um desafio para os gestores dos projetos, uma vez que, no Brasil, os instrumentos de interação entre burocracias estatais e atores sociais no âmbito de empreendimentos de infraestrutura são precários. Assim, o principal mecanismo de participação dos atores sociais locais nos processos decisórios são as audiências públicas, mormente as que ocorrem no processo de licenciamento ambiental. Pesquisas sobre o tema apontam as limitações desse instrumento participativo por seu caráter pontual e informativo, e sua temporalidade tardia (i.e., após a finalização do EIA-Rima) – ou seja, depois que as decisões governamentais foram tomadas (Abers, 2016).

 

No que se refere ao papel dos órgãos de controle, um achado relevante, por ir de encontro ao senso comum, foi que, pelo menos nos casos estudados, a atuação dos órgãos de controle não impactou negativamente os prazos de execução e os custos dos projetos (Gomide et al., 2016). A maioria das obras foi objeto de controle exercido, especialmente, pelos tribunais de contas (dos estados ou da União). Nos casos da UTE Candiota III e da BR-163/PA, a colaboração entre as burocracias executoras com as burocracias dos controles resultou em melhorias na gestão. No primeiro, a criação de uma unidade de gerenciamento de projeto foi capaz de realizar uma gestão eficiente da documentação, o que permitiu que respostas às demandas de investigações sobre irregularidades fossem fornecidas de forma ágil e a contento, evitando atrasos (Alves, 2017). No segundo caso, a partir da decisão do governo de retomar o empreendimento, inserindo-o no PAC (em 2007), os controles ocorreram de forma preventiva, o que ofereceu mais segurança aos técnicos e empresas envolvidos (Panariello, 2015).

 

Em relação ao licenciamento ambiental, este se caracteriza por representar um momento potencialmente conflituoso para a execução de projetos de infraestrutura, pois envolve vários atores e interesses – econômicos, sociais e ambientais. Por isso, o processo é alvo de muitas críticas relacionadas com a demora na emissão das licenças. Nos seis estudos de caso, o licenciamento ambiental não foi o fator crítico para os atrasos e os aumentos de custos observados. Contudo, na obra da Transnordestina, o licenciamento ambiental foi fragmentado por lotes, o que fez com que os estudos ambientais fossem concluídos em momento posterior (e não anterior) ao início da execução do empreendimento (a obra também foi caracterizada pela falta de gestão ambiental e por atrasos no cumprimento das condicionantes ambientais). O processo de licenciamento da UHE Teles Pires foi segmentado, fazendo com que a questão das terras indígenas fosse avaliada na execução de outra obra do complexo de hidrelétricas nos rios Tapajós-Teles Pires, a UHE de São Manoel (Ocon, 2015). No Metrô de Salvador, ritos básicos do processo de licenciamento ambiental não foram seguidos de forma adequada. Segundo Pêgo e colaboradores (2016), houve obras em andamento com Licença Prévia (LP) ou Licença de Instalação (LI) vencidas. No caso da BR-163/PA, o licenciamento ambiental ocorreu sem levar em conta as peculiaridades da região amazônica (Panariello, 2015). Destaca-se o caso da UTE Candiota 3 no qual uma intervenção do MPF na fase do licenciamento ambiental culminou na implantação de um amplo sistema de monitoramento de emissões nas três fases do empreendimento. Além disso, foi ainda firmado um acordo entre o Ibama e o empreendedor para a retirada de operação da Fase I a partir de 2017, por ser uma planta defasada tecnologicamente (Alves, 2017).

 

No que concerne ao papel dos governos subnacionais, os casos analisados indicaram que os municípios atuaram de forma periférica e pontual, ao realizar, por exemplo, somente as desapropriações necessárias para as obras (Lotta e Favareto, 2016). Mesmo quando o projeto foi originalmente proposto pelo governo estadual – como no caso da UTE Candiota 3 -, o governo federal assumiu papel central na execução e financiamento da obra. A análise de Lotta e Favaretto (2016) revelou que a articulação do governo federal com os entes subnacionais ocorreu, na maioria das vezes, quando surgem problemas a serem resolvidos a posteriori, a exemplo da readequação do traçado da Transnordestina em virtude da construção da Barragem do Serro Azul; ou da integração tardia entre o plano de operação do metrô – elaborado pelos governos estadual e federal – com o plano de transporte coletivo por ônibus do município de Salvador (Lotta e Favareto, 2016Sousa e Pompermeyer, 2016). A articulação com os governos subnacionais foi marcada também por ações paralelas aos empreendimentos, com o objetivo de suprir um déficit do Estado com a população local, como ocorreu na UHE Tele Pires, com a implementação de equipamentos de saúde indígena na região. Mas, mesmo nesses casos, os municípios aparecem apenas como receptores das ações implementadas pelo governo federal.

 

A análise empreendida nesta seção baseou-se em processos críticos, apontados tanto pela literatura como por gestores públicos, para execução de projetos de investimento no Brasil contemporâneo (Gomide et al., 2016). Os estudos de caso indicaram deficiências nas capacidades administrativas e relacionais da burocracia do governo federal. No que concerne à primeira, o planejamento e a seleção de projetos apareceram como a principal condicionante ao sucesso na execução dos projetos de investimento analisados. Do mesmo modo, evidenciaram-se deficiências na relação com a sociedade civil (ou a população local) – especialmente nos processos de licenciamento ambiental – como também na articulação com os entes subnacionais, ao passo que o adequado diálogo com os órgãos de controle externo aponta para melhorias na gestão. Na seção seguinte, serão analisados os dados do survey no objetivo de verificar o que eles revelam sobre as dimensões das capacidades estatais.

 

4. CAPACIDADES BUROCRÁTICAS E RELACIONAIS NOS SETORES DE ENERGIA E TRANSPORTES: OS DADOS DO SURVEY
Conforme discutido, a capacidade técnico-administrativa é atributo capital para a qualidade do planejamento e da seleção dos projetos a serem executados, com impactos diretos no cronograma e no orçamento das obras. Igualmente, as capacidades relacionais estariam positivamente associadas ao apoio político e aos aperfeiçoamentos dos projetos durante sua execução, aumentando a qualidade e o desempenho dos bens e serviços ofertados (tabela 1). Passa-se, dessa maneira, a analisar os dados do questionário aplicado aos servidores federais envolvidos no planejamento e na execução de projetos de infraestrutura, contrastando os subsetores de energia e transportes, com o objetivo de verificar o que eles revelam sobre essas duas dimensões das capacidades estatais.

 

4.1 Capacidades burocráticas
As capacidades burocráticas (ou administrativas) foram operacionalizadas por meio de três variáveis: profissionalização, autonomia e coordenação.

 

No que diz respeito à profissionalização, examinaram-se os dados sobre: a escolaridade; a experiência profissional no setor; e a compatibilidade entre trajetória profissional e atuação na administração pública. As duas primeiras informações permitem conhecer o nível de qualificação e de conhecimentos técnicos dos burocratas. Por sua vez, a terceira (compatibilidade) agrega dados sobre a convergência entre formação acadêmica e atuação profissional prévia com a natureza do trabalho realizado.

 

A tabela 1revela um alto nível de qualificação da burocracia pesquisada em ambos os subsetores. Desse modo, 70,5% dos respondentes da área de transporte possuem pós-graduação, e 78,3% dos respondentes do setor de energia cursaram pós-graduação (tabela 1).
Tabela 1 Nível de escolaridade dos burocratas de infraestrutura 
Curso de Nível mais Elevado Concluído Total
Fundamental e Médio Graduação Pós-Graduação
Setor Transporte e Logística Total 0 243 560 794
% em relação ao setor 0 29,5% 70,5 % 100,0%
Energia Total 0 25 90 115
% em relação ao setor 0 21,7% 78,3% 100,0%
Fonte: Survey Ipea/Enap. Teste de qui-quadrado foi realizado e não foi encontrada relação entre setor e nível de escolaridade, X² (1, N = 909) = 2.94, p = .086.
Contudo, a outra face da competência técnica, a experiência profissional, apresenta resultados modestos, já que a maioria dos respondentes nos dois subsetores possui baixa experiência profissional na área de infraestrutura – até cinco anos (tabela 2). Uma possível explicação para isso é que o setor de infraestrutura passou por um processo relativamente recente de fortalecimento de suas burocracias a partir da criação de carreiras próprias – como as de analista de infraestrutura e analista em infraestrutura de transporte, criadas em 2007 e 2005, respectivamente. Entretanto, Souza (2017) revela que, ao contrário de outras áreas da administração pública federal, a estruturação dessas carreiras é caracterizada por salários iniciais relativamente baixos. Assim, o serviço público pode encontrar dificuldades de competir com o mercado privado pelos profissionais mais experientes no setor de infraestrutura.

Tabela 2 Experiência na área de infraestrutura 

Experiência em Infraestrutura no Governo Federal Total
Baixo Médio Alto
Setor Transporte e Logística Total 434 247 112 793
% em relação ao setor 54,7% 31,1% 14,1% 100,0%
Energia Total 60 42 12 114
% em relação ao setor 52,6% 36,8% 10,5% 100,0%
Fonte: Survey Ipea/Enap. Teste de qui-quadrado foi realizado e não foi encontrada relação entre setor e experiência em infraestrutura no governo federal, X² (2, N = 907) = 2.03, p = .361.
Finalmente, a compatibilidade entre atuação na administração pública e trajetória profissional prévia revela um alto aproveitamento dos servidores públicos, conforme mostra a tabela 3.
Tabela 3 Compatibilidade acadêmica e de trajetória profissional 
Compatibilidade Acadêmica Compatibilidade de Trajetória Total
Alta Média Baixa Alta Média Baixa
Setor Transporte/Logística Total 681 71 41 545 157 91 793
% em relação ao setor 85,9% 9,0% 5,2% 68,7% 19,8% 11,5% 100,0%
Energia Total 91 16 8 63 34 18 115
% em relação ao setor 79,1% 13,9% 7,0% 54,8% 29,6% 15,7% 100,0%

Fonte: Survey Ipea/Enap. Teste de qui-quadrado foi realizado e não foi encontrada relação entre setor e compatibilidade acadêmica, X² (2, N = 908) = 3.7, p = .156. Teste de qui-quadrado foi realizado e foi encontrada relação entre setor e compatibilidade de trajetória, X² (2, N = 908) = 8.93, p = .012.

 

Em relação à autonomia, os dados do survey fornecem informações sobre o vínculo com a administração (se servidor efetivo ou não) e a percepção dos burocratas sobre a interferência política11 nas suas rotinas de trabalho. Enquanto o vínculo representa uma variável que explica a estabilidade e, assim, representa um indicador importante da autonomia (por permitir que o burocrata tome decisões sem correr o risco de ameaças de demissões), a alta frequência da interferência política nas rotinas de trabalho pode evidenciar uma subordinação dos burocratas aos interesses políticos, em detrimento da racionalidade técnica nos processos decisórios.
Nesse sentido, pouco mais da metade dos respondentes do setor de transporte possui vínculo efetivo com a administração pública, sendo concursados e pertencentes a carreiras estáveis. No setor de energia, apenas 36,5% apresentam vínculo efetivo, predominando empregados públicos, conforme os dados da tabela 4.

Tabela 4 Vínculo do respondente com a administração pública federal 

Vínculo com Administração Pública Federal Total
Efetivo Empregado Público
Setor Transporte e Logística Total 424 369 793*
% em relação ao setor 53,5% 46,5% 100,0%
Energia Total 42 73 115*
% em relação ao setor 36,5% 63,5% 100,0%

Fonte: Survey Ipea/Enap. Teste de qui-quadrado foi realizado e foi encontrada relação entre setor e vínculo com a administração pública federal, X² (1, N = 908) = 11.5, p = .001.

 

Quando perguntados sobre suas rotinas de trabalho, a “interferência política” aparece de forma frequente – sobretudo no setor de transporte, com 62,6% das respostas (tabela 5).

 

Tabela 5 Percepção dos burocratas sobre o nível de interferência política nos processos decisórios 

Nível de Interferência Política Total
Baixo Médio Alto Não se Aplica
Setor Transporte e Logística Total 83 159 496 54 792
% em relação ao setor 10,5% 20,1% 62,6% 6,8% 100,0%
Energia Total 11 28 55 21 115
% em relação ao setor 9,6% 24,3% 47,8% 18,3% 100,0%

Fonte: Survey Ipea/Enap. Teste de qui-quadrado foi realizado e foi encontrada relação entre setor e nível de interferência política, X² (3, N = 907) = 20,4, p = .000.

 

Em relação à coordenação, os dados do survey fornecem informações tanto em relação à frequência de interação intraorganizacional (i.e., com os superiores, subordinados e colegas de outras unidades afins na mesma organização) como interorganizacional (i.e., com outros órgãos do governo). A análise dos dois setores permite inferir uma coesão interna relativamente menor no setor de energia em relação ao de transportes, com 32,2% e 50,1%, respectivamente (tabela 6). Entretanto, em relação à interação interburocrática, predominam baixas frequências de interação dos dois setores com outros órgãos do governo (tabela 7). Assim, infere-se baixa coordenação intragovernamental.

Tabela 6 Frequência de interação intraburocrática 

Frequência de Interação Intraburocrática Total
Baixo Médio Alto
Setor Transporte e Logística Total 88 308 397 793*
% em relação ao setor 11,1% 38,8% 50,1% 100,0%
Energia Total 20 58 37 115*
% em relação ao setor 17,4% 50,4% 32,2% 100,0%

Fonte: Survey Ipea/Enap. Teste de qui-quadrado foi realizado e foi encontrada relação entre setor e frequência de interação intraburocrática, X² (2, N = 908) = 13,4, p = .001.

 

Tabela 7 Frequência de interação interburocrática 

Frequência de Interação Interburocrática Total
Baixo Médio Alto
Setor Transporte e Logística Total 405 227 160 792*
% em relação ao setor 51,1% 28,7% 20,2% 100,0%
Energia Total 49 34 30 113*
% em relação ao setor 43,4% 30,1% 26,5,8% 100,0%

Fonte: Survey Ipea/Enap. Teste de qui-quadrado foi realizado e foi encontrada relação entre setor e frequência de interação interburocrática, X² (2, N = 908) = 6.84, p = .003.

 

4.2 Capacidades relacionais

A capacidade relacional se refere às habilidades das burocracias em mobilizar o apoio político e social para a realização dos objetivos estabelecidos e obter novas informações e conhecimentos para aumentar a qualidade e a efetividade dos bens e serviços a serem oferecidos. Deste modo, o diálogo das burocracias com atores sociais locais e órgãos de controle pode apresentar efeitos positivos no cumprimento de requisitos ambientais e garantir os direitos das minorias e grupos sociais vulneráveis (Pereira, 2014). A articulação interfederativa, por sua vez, permite a realização de uma gestão territorial mais acertada, canalizando as demandas e interesses dos atores dos territórios sob intervenção para que os empreendimentos deixem um legado de desenvolvimento local (Lotta e Favareto, 2016).

 

Como discutido, a interação entre burocracias estatais e atores sociais, no âmbito da execução de empreendimentos de infraestrutura, é limitada pelo predomínio das audiências públicas. O pouco diálogo com os atores sociais locais é contrastado pelos dados coletados pelo survey, a respeito da frequência de interação entre as burocracias do setor de infraestrutura com as empresas privadas. Parte considerável dos respondentes dos setores de energia (36,5%) e transportes (48,5%) avaliou como alta a interação com esses atores (tabela 8). Todavia, ao contrário das relações com a sociedade civil, que se dão de forma institucionalizada (audiências públicas), a relação com empresas privadas apresenta um caráter informal (Pereira, 2014Pires e Vaz, 2014). A interação frequente com empresas privadas, associada à baixa autonomia burocrática, pode aumentar os riscos de captura do setor público pelos interesses dos grupos privados.

 

Tabela 8 Frequência de interação da burocracia de infraestrutura com empresas privadas 

Interação com Empresas Privadas Total
Baixo Médio Alto
Setor Transporte Total 219 189 385 793
% em relação ao setor 27,6% 23,8% 48,5% 100,0%
Energia Total 48 25 42 115
% em relação ao setor 41,7% 21,7% 36,5% 100,0%

Fonte: Survey Ipea/Enap. Teste de qui-quadrado foi realizado e foi encontrada relação entre setor e interação com empresas privadas, X² (2, N = 908) = 10.08, p = .006.

 

Já a interação entre a burocracia do Poder Executivo com os órgãos de controle pode, diferentemente, representar oportunidades para que projetos de investimento sejam aperfeiçoados (Olivieri, 2016). Contudo, os dados do survey indicam que a frequência de interação das burocracias executoras com órgãos de controle é reduzida: no setor de transporte, 71% dos respondentes avaliam esse tipo de interação como baixa; no setor de energia, 80,2% possuíam a mesma percepção (tabela 9).

 

Tabela 9 Frequência de interação da burocracia de infraestrutura com órgãos de controle 

Frequência de interação com órgãos de controle Total
Baixo Médio Alto
Setor Transporte Total 563 123 107 793
% em relação ao setor 71,0% 15,5% 13,5% 100,0%
Energia Total 93 11 12 116
% em relação ao setor 80,2% 9,5% 10,3% 100,0%

Fonte: Survey Ipea/Enap. Teste de qui-quadrado foi realizado e não foi encontrada relação entre setor e frequência de interação com órgãos de controle, X² (2, N = 909) = 4,44, p = .109.

 

No que concerne à articulação federativa, os dados também revelam baixa interação entre a burocracia federal com os órgãos locais: no setor de transportes, 63,1% dos respondentes assinalaram essa interação como baixa; no setor de energia 88,7% dos respondentes compartilharam essa mesma percepção (tabela 10). Isso corrobora a constatação dos estudos de caso, que apontaram um papel passivo dos municípios, como meros receptores dos investimentos.

Tabela 10 Frequência de interação federativa 

Frequência de interação federativa (estados e municípios) Total
Baixo Médio Alto
Setor Transporte Total 500 159 134 793*
% em relação ao setor 63,1% 20,1% 16,9% 100,0%
Energia Total 102 7 6 115*
% em relação ao setor 88,7% 6,1% 5,2% 100,0%

Fonte: Survey Ipea/Enap. Teste de qui-quadrado foi realizado e foi encontrada relação entre setor e frequência de interação federativa, X² (2, N = 908) = 29.5, p = .000.

 

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho teve o objetivo de discutir as capacidades do Estado brasileiro, nomeadamente da burocracia do governo federal, para produzir políticas de infraestrutura que entreguem os resultados esperados e obtenham o apoio (ou o consentimento) dos grupos sociais impactados. A partir da revisão da literatura sobre capacidades estatais foi desenvolvido um framework (quadro 1) que orientou a análise dos dados empíricos. Desta estratégia metodológica puderam ser extraídas algumas inferências.

 

No que concerne às capacidades relacionais, os estudos de caso e os dados do survey indicaram que o relacionamento da burocracia federal com atores externos é marcado pelo diálogo precário com os grupos sociais afetados pelas obras. Contudo, a interação com as empresas privadas é frequente. Os dados analisados revelaram também uma baixa interação da burocracia do Poder Executivo Federal tanto com órgãos dos governos subnacionais como com os órgãos de controle externo. No que se refere às capacidades administrativas, a burocracia federal é profissionalizada e com boa qualificação técnico-acadêmica. Contudo, parte significativa dos respondentes não possui vínculo efetivo no serviço público, além de ter apontado como um problema frequente a interferência política nos processos decisórios, sobretudo no setor de transportes. Soma-se a isso a baixa interação com outros órgãos governamentais.

 

No que concerne à questão da interferência política nos processos decisórios, cabem algumas ponderações. Dadas as implicações socioeconômicas das decisões de investimento em infraestrutura, vários atores, de dentro e fora do governo, procuram influenciar o processo decisório e defender seus interesses. Os grandes projetos de infraestrutura são caracterizados pela complexidade (Flyvbjerg, 20072014), e quanto mais intricadas, incertas e ambíguas as condições para a tomada de decisão, mais problemático se torna o uso de técnicas racionais.12 Lindblom (1959) mostrou que processos decisórios de políticas públicas são fundamentalmente políticos, caracterizados por negociações e concessões mútuas entre os diferentes atores e interesses em jogo. Por isso, Wegrich e Hammerschmid (2017) argumentam que a interferência política nas decisões do setor é um fenômeno universal, inevitável. Não se quer dizer com isso que as decisões de investimento no setor devam prescindir do uso de técnicas de planejamento ou de avaliação e seleção de projetos. Como afirmam Loureiro e Abrucio (2012), a inteligência da democracia consiste justamente na capacidade de incorporar o conhecimento técnico e a análise racional à política.

 

Os achados deste trabalho proporcionam elementos para melhor compreender a atuação e o desempenho do Estado brasileiro na política de infraestrutura, e os dados e informações analisados ajudam a explicar os resultados observados por parte da literatura recente no que condiz à eficiência da ação do Estado. Além disso, este esforço de pesquisa sugere um fértil campo de investigação sobre a governança das políticas de infraestrutura, pois o país necessita não só de mais investimentos, mas de melhorar os resultados obtidos com os recursos empregados.
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1Para a análise produzida neste artigo, foram excluídos os respondentes lotados em órgãos de regulação. Os detalhes sobre a amostra referente aos setores de energia e transporte encontram-se no anexo deste artigo.

2Quais sejam, as modalidades de execução (pública e privada; direta e indireta) e os eixos de investimento do Programa (logístico, energético e social-urbano).

3A tabela 2, adiante, apresenta as principais características da implementação dos empreendimentos de infraestrutura estudados.

4Souza (2017), ao estudar a modernização do Estado brasileiro, associa a profissionalização com a especialização e a realização de tarefas embasadas pelo conhecimento técnico e o recrutamento meritocrático.

5Como Flyvbjerg (2007, 2014) mostrou, a qualidade dos projetos selecionados tem impactos diretos no cumprimento dos prazos e orçamentos planejados. Raiser e colaboradores (2017) defendem o mesmo argumento.

6“Serviços públicos de qualidade e com os benefícios esperados” se referem a políticas que produzam desenvolvimento regional e local, gestão dos impactos ambientais e em populações vulneráveis, e distribuição homogênea dos riscos e vantagens do empreendimento (Flyvbjerg et al., 2003).

7De acordo com a Lei no 8.666/1993, a execução pode ocorrer nas modalidades “própria” ou “por terceiros”. Na execução própria direta, os órgãos do governo federal são responsáveis pela construção do empreendimento. No caso da execução própria indireta, cabe ao órgão federal contratar empresas para essa finalidade. Na execução por terceiros, a execução do empreendimento é de responsabilidade de diferentes órgãos dos governos municipal e estadual, cabendo ao Governo Federal o estímulo, financiamento e acompanhamento das ações dos governos subnacionais.

88 A licença de operação (LO) da linha de transmissão Matrinchã foi emitida pela Secretaria do Meio Ambiente do Estado do Mato Grosso em 29 de julho de 2016 (LO no 313.167/2016); e a emissão da LO da linha Guaraciaba foi concedida pelo Ibama, em 30 de agosto de 2016 (LO no 1.349/2016).

99 A nova previsão de finalização da pavimentação da BR-163/PA é o ano de 2018, conforme informação do governo federal: <www.brasil.gov.br/infraestrutura/2017/08/br-163-sera-pavimentada-ate-miritituba-no-para>.

1010 Entretanto, em dezembro de 2017, apenas 50% da execução física da obra haviam sido finalizados.

11A pergunta do survey referente à interferência política é a seguinte: “Pensando na execução e na regulação de projetos de infraestrutura, indique com que frequência os seguintes problemas afetam a sua rotina de trabalho”. A opção “interferência política” representa uma entre 13 opções de resposta. Assim, a natureza da interferência política não é definida pelo questionário. Porém, na seção “considerações finais”, deste artigo, é desenvolvida uma discussão, com base na literatura, sobre essa questão.

12O comportamento sob tais condições pode ser mais bem entendido pelo argumento da “racionalidade limitada” de Simon (1955).

 

 

GOMIDE, Alexandre de Ávila; PEREIRA, Ana Karine. Capacidades estatais para políticas de infraestrutura no Brasil contemporâneo. Rev. Adm. Pública,  Rio de Janeiro ,  v. 52, n. 5, p. 935-955,  Oct.  2018 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-76122018000500935&lng=en&nrm=iso>. access on  30  Oct.  2018.  https://doi.org/10.1590/0034-761220170006.